Parece uma obviedade afirmar que quem nasce no Brasil é brasileiro/a. Nem tão óbvio é dizer que quem nasce no Brasil também é latino/a. Essa identidade regional não é tão nítida assim para muitas pessoas. Ao contrário, eu arriscaria dizer que brasileiros/as são, em geral, apartados de sua região. Será que faz diferença se reconhecer latina? A partir daqui, continuarei escrevendo no feminino - como subversão da norma que universaliza o masculino - para me referir a todos os gêneros.
Quando fui à escola, o ensino ainda era dividido em primário e ginásio. Nesse importante marco para mim (e possivelmente para tantas outras meninas) - que era praticamente um divisor escolar entre infância e adolescência -, a quarta série (o último ano do primário) representava uma transição para a nova forma de organização do tempo e espaço na escola. Foi nesse ano que minhas manhãs passaram a ser divididas em matérias lecionadas tanto em salas de aula quanto por professoras diferentes (até aqui, todas professoras mulheres… foi só na quinta série que passei a ter meu primeiro professor homem, não surpreendentemente em uma disciplina de ciências exatas - matemática).
Assim, foi no final do terceiro ano, ao fazer a matrícula para o quarto, que me deparei com uma das minhas primeiras escolhas escolares (em retrospectiva, sou extremamente grata a minha mãe e meu pai que me deram autonomia para fazer essa escolha, mas esse é um papo - da autonomia progressiva de crianças e adolescentes - para outro dia). Dentre as matérias que eu teria no ano seguinte, havia também o ensino de língua estrangeira e me foram ofertadas 3 opções: inglês, alemão ou espanhol. Levantei algumas considerações sobre cada idioma e fui resolutiva na minha decisão: espanhol. Lembro bem de um dos motivos que pesaram na minha escolha: a criação do Mercosul. Aos 10 anos, eu não entendia os aspectos políticos que uma integração econômica representava. Hoje, acredito que fui mobilizada pelo desejo de eu mesma me integrar a minha região, por meio do idioma. Eu queria aprender a me comunicar com essas pessoas que, apesar de falarem outra língua, teriam outros aspectos em comum comigo. Eu não tinha ideia do que seriam esses possíveis interesses a serem compartilhados, mas havia um desejo de troca e um esboço de colaboração em prol de algo a ser feito conjuntamente.
Quase 15 anos depois de começar a estudar esse idioma que tanto me encantou, veio outro marco na construção da minha identidade latina: passei a integrar uma rede feminista latinoamericana e caribenha de defesa dos direitos das mulheres, o CLADEM. Foi a partir dessa época que passei também a "sair a caminhar pela cintura cósmica do sul", inspirada por cantoras que me tocavam de um jeito especial… era (e continua sendo) algo como acender uma chama no peito. Aliás, essas caminhadas são sempre acompanhadas pelas músicas que cantam nossas dores e nos acolhem, possibilitando transmutar o sofrimento em resistência e luta.
Minha última andança pela região foi em novembro passado, para o extremo sul da Argentina. Voltando do fim do mundo, fiz uma passagem rápida por Buenos Aires e depois de algumas horas visitando o MALBA - o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, fui dar uma olhada nos filmes que estavam em cartaz por lá. Para minha sorte, um deles era Que sea ley, um documentário que mostra a luta do movimento feminista na Argentina para legalizar o aborto no país. Em junho de 2018, o projeto que legalizava o aborto até a 14ª semana de gestação foi aprovado na Câmara dos Deputados. O Senado, contudo, o rejeitou. As mulheres argentinas continuam sendo criminalizadas, assim como quase todas nós que vivemos na região. Em alguns países - El Salvador, Honduras, Haiti, Nicarágua, República Dominicana e Suriname - a interrupção voluntária da gravidez é completamente proibida. Se a vida de uma mulher estiver em risco, a gestação - ainda que muito recente - é privilegiada sem considerar que o embrião depende dessa vida para poder se desenvolver. Nesses contextos, até mesmo mulheres que sofrem abortos espontâneos são, por vezes, criminalizadas. Na região, a maioria dos países permitem a interrupção voluntária somente para salvar a vida da mulher. Alguns permitem também em casos de gravidez resultante de estupro - como Brasil, Panamá e Chile - e anomalias fetais graves. Uruguai, Cuba e Guiana são as exceções, onde se permite a interrupção até a décima ou décima segunda semana de gestação. Dessa forma, a legalização do aborto ainda é uma dívida dos países latino americanos com os direitos humanos das mulheres.
Que sea ley nos fazer reviver toda a tristeza que sentimos (nós, feministas e progressistas) quando o projeto de lei argentino não foi aprovado. Ali, é possível sentir o que Vilma Piedade comunica ao afirmar que não é pela soridade que as mulheres se irmanam, mas pela dororidade. Quase todas as pessoas que assistiam a sessão eram mulheres. Quando o filme terminou, estávamos todas chorando, trocando olhares e gestos de acolhimento. Aquele choro que é fruto da dor. A dor do mundo. É uma dor coletiva, não individualizada. Levei alguns minutos para conseguir me recompor e reunir forças para levantar. Saindo da sala de cinema, ainda havia outra mulher, sentada na última fileira. Ela ainda chorava muito. Fui em direção à saída mas, sentindo a dor dela, voltei. Parei diante dela, que ergueu a cabeça com os olhos inchados, tanto quanto os meus. Estendi os braços e ficamos ali, abraçadas, chorando e buscando respirar fundo, enquanto saíam algumas palavras do quanto isso nos doía e era injusto. Por fim, nos olhamos profundamente nos olhos uma da outra e eu lhe disse: que sea ley. Será lei. Na Argentina, Alberto Fernández - o novo presidente - venceu as eleições com o compromisso de assumir a pauta da descriminalização do aborto. Ainda não sabemos quando isso irá ocorrer, mas não descansaremos enquanto todas as mulheres - não só as que podem pagar por um procedimento seguro - tenham plenos direitos reprodutivos.
Mas a dívida não é só com os direitos reprodutivos. A região latinoamericana e caribenha, apesar de sua imensa diversidade, tem um histórico em comum. Colonianismo, escravidão, imperialismo, ditaduras. O legado desse passado é de profundas desigualdades e uma paradoxal constante instabilidade política e econômica. A colonização também foi da mente. Até alguns anos atrás, eu sempre achei que fosse ocidental e branca. Até que, em um tour político-ativista à Palestina, perguntei a uma ativista israelense pró-Palestina como ela via a questão do feminismo, supondo que ela seria oriental. Afinal, ela nasceu e vivia no Oriente Médio. Ela simplesmente disse que não poderia responder à minha questão, pois ela era ocidental. Eu fiquei com um nó no cérebro e depois de confirmar com as colegas que estavam comigo na sala se eu havia entendido corretamente, entendi duas coisas: 1) geograficamente, Israel está localizado na Ásia, mas culturalmente ele é um país ocidental; 2) apesar de a América Latina estar no lado Ocidental do globo, nós nos localizamos no Sul Global. Ou seja, aos olhos do Norte, nós não somos ocidentais; somos latinas e não brancas.
Obviamente, pela forma como se estruturam as relações raciais no Brasil, seria injusto eu ignorar os privilégios da branquitude. Há, de fato, um sistema de discriminação que estabelece privilégios de um lado e opressão de outro, dos quais decorrem vantagens materiais e simbólicas para pessoas brancas. Mas quando eu tiro meus pés da minha região, minha leitura social é outra: é de uma latina - outra que não ocidental. Por fim, o que quero dizer é que se reconhecer como um sujeito político situado é um passo fundamental para a libertação desse povo sem pernas, mas que caminha, como canta Calle 13. Que caminhemos rumo à justiça, não ao fundo do poço.
Crédito da imagem: Verne Ho
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