No Brasil, uma em cada 5 mulheres de até 40 anos já interrompeu uma gestação. Dessas, 56% são católicas, 25% são evangélicas ou protestantes e 7% professam outras religiões. A maioria delas já é mãe: 67% têm filhos.[1] Esses dados são fundamentais para compreender a dimensão do aborto no Brasil e, em especial, identificar quem são as mulheres que estão voluntariamente interrompendo gestações que não desejam levar a termo. Descobrir que essas mulheres são adultas, religiosas e que não necessariamente repudiam qualquer possibilidade de exercer a maternidade (afinal, muitas já são mães) contraria o que diz o senso comum ou os discursos contrários a descriminalização do aborto.
Com a audiência pública da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442 (ADPF 442), que tramita no Supremo Tribunal de Federal (STF), nos dias 3 e 6 de agosto, a sociedade brasileira se mobilizou em torno do tema do aborto. A referida ADPF visa descriminalizar a interrupção da gravidez até a 12ª semana de gestação. Ou seja, ao deixar de considerar essa prática um crime, ela busca deslocar a questão do âmbito penal – que cega, invisibiliza, empurra para a clandestinidade e mata as mulheres – para a saúde pública, onde é possível discutir sobre o aborto e compreender a realidade das mulheres que, mesmo usando métodos contraceptivos (sim, eles falham), deparam-se com gestações indesejadas. Ao enxergar o tema pela ótica da saúde é possível garantir direitos e dar respostas adequadas por meio de políticas públicas. Mesmo que esse seja o segundo passo – da legalização –, importa fundamentalmente nesse momento descriminalizar essa prática que ocorre diariamente de forma mais ou menos insegura, dependendo de qual mulher o faz: rica ou pobre, negra ou branca, urbana ou rural…
É por isso que precisamos falar sobre gestação indesejada, autonomia e educação. Sexualidade e reprodução já foram duas coisas intrinsecamente ligadas. Entretanto, o uso de métodos contraceptivos permite às mulheres exercer a sexualidade sem necessariamente isso acarretar reprodução. Dai parecem surgir ao menos três problemas. O primeiro é a incapacidade de um sistema patriarcal e machista aceitar a liberdade sexual das mulheres, que as pune por exercerem seus próprios direitos – como o de livremente exercer sua sexualidade. Na lógica sexista, se uma mulher engravida por exercer esse direito, ela precisa obrigatoriamente aceitar as “consequências” do ato (hetero)sexual.
O segundo problema é cobrar a responsabilidade exclusiva das mulheres em prevenir a gravidez, quando ela depende igualmente dos homens. Além da própria gravidez ocorrer no corpo da mulher, socialmente o trabalho de cuidado dos bebês e das crianças são relegados às mulheres em razão de estarem na famosa “esfera privada”. Para muito além de uma suposta “capacidade” feminina exclusiva para esse tipo de cuidado (além da gestação, do parto e da amamentação), o que acontece é uma divisão sexual do trabalho atribuída a partir de uma socialização – que inicia na infância – diferente para homens e mulheres e que distribui assimetricamente certos papeis a cada um/a.
O terceiro problema é presumir que métodos contraceptivos são 100% seguros, sejam os preservativos feminino e masculino, a pílula, o dispositivo intrauterino (DIU) etc. Até a esterilização cirúrgica masculina, como a vasectomia, pode ser revertida espontaneamente e acarretar uma gravidez indesejada. Assim, mesmo que fosse usado um método contraceptivo 99% seguro, de cada 100 relações sexuais, ao menos uma incorreria em uma gravidez não desejada. Por que uma mulher deveria ser obrigada a manter essa gestação ou ser criminalizada caso a interrompesse? A resposta passa, mais uma vez, pelo sistema machista e patriarcal travestido de uma defesa abstrata da “vida”, ignorando que para além da vida do feto há também a vida da mulher da qual ele depende.
O Estado, contudo, não pode reproduzir nem alimentar esse sistema. Pelo contrário, precisa garantir os valores e as liberdades democráticas, incluindo a autonomia que permeia os direitos sexuais e reprodutivos. Enquanto o Estado decidir sobre os corpos das mulheres e não pudermos escolher sobre o rumo de nossas próprias vidas, a democracia estará em dívida conosco. Além de a criminalização do aborto ser antidemocrática, ela é também injusta na medida em que relega as mulheres ao espaço privado da reprodução e nega a paridade de participação no espaço público. Enquanto a maternidade for compulsória não será possível falar em igualdade de gênero. A paternidade, por outro lado, parece ser uma escolha: é sempre bom lembrar que, no Brasil, 5,5 milhões de crianças não têm registro do pai na Certidão de Nascimento.[2]
Além disso, enquanto a interrupção voluntária permanece na esfera penal, ela alimenta o estigma do crime e fortalece os argumentos conservadores contrários aos direitos humanos das mulheres, impedindo a garantia do direito à interrupção inclusive nos casos de abortamento legal (gravidez resultante de estupro, risco de vida a saúde da gestante e anencefalia).
Por fim, é preciso falar sobre educação como um meio pelo qual será possível discutir aberta e democraticamente sobre tudo que permeia sexualidade, reprodução, maternidade, prevenção tanto de gravidez quando de infecções sexualmente transmissíveis, direitos, saúde, vida. Ao invés de ignorar a realidade do aborto quando ele é criminalizado, situá-lo no campo da saúde pública possibilita as mulheres falar sobre suas realidades e tomar decisões verdadeiramente autônomas em relação a manutenção ou não de uma gravidez inicialmente indesejada – que pode assim continuar ou não. Antes mesmo disso, uma educação em sexualidade adequadamente orientada é capaz de garantir o desenvolvimento da autonomia e o exercício da sexualidade em consonância com os direitos humanos, ou seja, livre de qualquer tipo de violência.
Possivelmente temos algo para ensinar, mas sem dúvida temos muito a aprender com países que já reconhecem as mulheres como plenos sujeitos de direitos e que há décadas, como nos países do norte global, ou mais recentemente, como o Uruguai na América do Sul, já entenderam que criminalizar as mulheres por interromperem voluntariamente a gestação é uma resposta inadequada do Estado para uma questão de saúde pública.
Aliás, não nos parece “à toa” essa divisão global tão nítida entre países do sul e do norte: não seria exagero afirmar que esse é mais um aspecto do terrível legado que as ditaduras militares deixaram em nossa região.[3] Enquanto as mulheres daqui se engajaram na luta pelos direitos civis e políticos, as mulheres de lá conseguiram avançar nos direitos sociais e, em especial, na agenda de direitos sexuais e reprodutivos. Ainda que outras liberdades fundamentais estejam novamente ameaçadas no Brasil, a liberdade fundamental das mulheres em decidir sobre seu próprio corpo não pode mais esperar, por uma questão de justiça e democracia.
[1] DINIZ, Debora. MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. In: Ciência e Saúde Coletiva, v. 15, supl. 1, jun. 2010, p. 959-966. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232010000700002&lng=en&nrm=iso> Acesso em: 02 nov. 2014.
[2] BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTICA. Pai presente e certidões. Brasília: CNJ, 2012. Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/cnj/cartilha_pai_presente_indice.pdf> Acesso em: 14 ago. 2018.
[3] ROSENDO, Daniela; GONÇALVES, Tamara Amoroso. Direito à vida e à personalidade do feto, aborto e religião no contexto brasileiro: Mulheres entre a vida e a morte. Ethic@ – Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, v.14, n. 2, p. 300 – 319, dez. 2015.
* Texto originalmente publicado no Justificando
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